sexta-feira, 20 de abril de 2012

ALVD Madeira em Movimento

13 de Abril
Celebração de Envio
Na passada 6ªfeira, dia 13 de abril, realizou-se o envio de mais dois voluntários com destino à Missão Dehoniana de Alto Molócuè: o Rubén e a Halska. Formados na área da medicina e antropologia respetivamente, o casal ficará na missão por um período de aproximadamente 8 meses e procurará dar continuidade ao trabalho que tem vindo a ser desenvolvido pelos voluntários quer no Centro Juvenil de Alto Molócuè, quer nas comunidades católicas espalhadas pelo território deste Distrito.

Depois da missa de envio houve um jantar convívio. A noite terminou, como não podia deixar de ser, com uma típica poncha, acompanhada de muita animação e boa disposição.

Confiantes de que darão o melhor de si, acompanhamo-los na nossa oração com o sincero desejo que esta seja uma experiência muito proveitosa para eles, para a comunidade que os acolhe e para o povo de Alto Molócuè.

Até breve Rúben e Halska! Ou, em lomwé: Nnamukumana!

14 de Abril
Formação sobre a Espiritualidade Dehoniana e Espetáculo de Solidariedade
Para o grupo de 7 voluntários que se prepara para realizar a experiência de voluntariado missionário durante o mês de agosto deste ano, o dia começou pelas 10h da manhã na Casa do Povo da Camacha. Na parte da manhã, os assuntos foram de cariz mais prático, e andou-se sobretudo em volta do projeto de intervenção no Centro Juvenil de Alto Molócuè e da organização dos próximos eventos de angariação de fundos e divulgação da associação agendados.

Depois do almoço e, com um público mais alargado, o Pe. Roberto falou-nos da espiritualidade dehoniana – o Pe. Dehon, a Congregação e as Missões. Aproveitamos também para agradecer a sua disponibilidade, trabalho e testemunho de verdadeiro missionário.

Este sábado, recheado de atividade, não poderia ter terminado de melhor forma. Com vista à angariação de fundos, o grupo que se prepara para realizar a experiência de voluntariado em agosto, organizou no auditório da Casa do Povo da Camacha um espetáculo de variedades que contou com a colaboração gratuita de vários grupos, pessoas e instituições, num verdadeiro movimento solidário. O auditório tornou-se pequeno para os muitos que quiseram assistir e ajudar nesta causa. Estima-se que tenham assistido ao espetáculo cerca de 140 pessoas e que tenham sido vendidos cerca de 200 bilhetes. Não podemos deixar de agradecer a boa vontade e generosidade de todos os que, de alguma forma, deram a sua colaboração. 

15 abril No dia 15 de abril iniciou-se a ida às paróquias nas missas dominicais. Durante a missa os voluntários ou o pe. Juan, quando presente, dão testemunho e apresentam o projeto da associação e, no final, aqueles que assim entenderem dão a sua colaboração à associação através da aquisição artigos diversos da associação (canetas, t-shirts, marcadores, tijolos, postais, etc.)

 Apesar de toda a conjetura, a generosidade e sensibilidade das pessoas perante a nossa causa permanece inalterada e só nos podemos sentir gratos. A primeira igreja a ser visitada foi no funchal - Igreja do Colégio. Nos próximos fins-de-semana os voluntários passarão por diversas paróquias continuando este trabalho de divulgação.

Elisa

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Grupos ALVD para Africa em 2012 . ALVD... em grande movimento

1. Partiram, a 16 de Abril 2012, dois voluntários da Madeira em direcção ao Molocue (Moçambique) por um ano.

2. Partirão da Madeira em Agosto um grupo de 7 voluntários acompanhados do P. Juan também para o Molocue durante o mês de Agosto.

3. Partirá um grupo do Porto coordenado pelo P. Rosário para Luau durante o mês de Agosto.

4. Partirão três grupos da paroquia de Carnaxide sob a responsabilidade da ALVD para Cobue, Metangula e Gurue (Moçambique, coordenados pelo P. Luciano).

5. Estão a ser preparados dois grupos no Seminário de Alfragide por mim P. Adérito Barbosa com apoio do P. José Manuel para Lichinga: educadores de infância e alfabetização.

6. Partirá um casal no verão para apoiar na paramentaria em Viana (Luanda), também preparado pela ALVD.

7. A ALVD está a coordenar a publicação do livro do P. Elia Ciscato sobre a cultura Moçambicana.

8. Um grupo sob a coordenação da ALVD está a organizar um contentor de livros para a Universidade Católica Moçambicana de Lichinga e para a mesma diocese.

9. Foram enviados a 31 de Março 30 caixas de livros e computadores para Lichinga.

Ao dispor para outras informações,
Adérito Barbosa, scj

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Testemunho de uma irmã jovem em Timor

Feliz e Santa Pascoa 2012! Citando uma mensagem de Boas Festas Pascais que uma amiga, a Alexandra nos enviou: “o Aleluia Pascal! Que ressoa na Igreja, exprime a exultação silenciosa do universo e sobretudo o anseio de cada alma humana aberta sinceramente a Deus, mais ainda, agradecida pela Infinita bondade, beleza e verdade!” Papa Bento XVI.

Esta mensagem fez-nos sentir numa profunda unidade à nossa Igreja Universal, digo mais fez-nos sentir por momentos completamente juntas a todos vós que celebrais a Pascoa em Portugal e em todos os lugares do nosso mundo com quem partilho estas minhas mensagens, um misterioso sentimento pascal!

Também as muitas mensagens das comunidades, algumas que vinham no word, imprimimos e colocámos num placard feito de Tai, sim porque temos uma impressora que funciona muito bem para o efeito, e outras vimos em comum no power point, e outras em pequenos filmes, todas nos tocarem e queremos agradecer de todo o coração a cada um e cada uma por todo o vosso carinho pascal!

Depois da Festiva e Feliz celebração de Domingo de Pascoa, aqui em Memo, decidimos, celebração de forma natural e comunitária, tratámos de preparar o almoço, melhor,  a cozinheira cá do sitio, a ir. Olívia e descemos as nossas montanhas ao longo de 1hora e meia até à “nossa” praia mais próxima, bem perto da fronteira com a Indonésia, desta vez bem me custou percorrer esta descida, já era um pouco tarde, final da manhã, tínhamos nos deitado tarde por causa da vigília pascal, e então o cansaço também nos atingiu um pouco para fazermos esta pequena viagem de 50km, mas lá chegámos! Uma praia só pra nós com agua bem quentinha do Oceano Pacifico que fez as nossas delicias nesta Pascoa de 2012! Percorri aquela praia durante horas e comtemplei o que apenas havia: o Mar, as nuvens no céu azul, o areal liso nuns bocados e  noutros cheio de diferentes seixos, pedras e lindas conchas gigantes, as quais trouxe duas que poderão ver nas imagens. A ir. Olívia ficou sentada num belo tronco junto à beira mar a estudar o tétum num manual, eu claro não posso estar quieta, maquina na mão e pronta para andar e ver tudo o que conseguir alcançar, uma irrequieta!





O ponto mais interessante logicamente, foi o nosso almoço, em cima dum tronco de uma arvore montámos o nosso festim pascal e comemos muito bem, graças a Deus, cerveja “Sagres” com o nome de Tinger, foi a nossa bebida fresquinha! Bem bom podem acreditar! Vejam as imagens!

De regresso a casa, recebemos alguns amáveis telefonemas com as saudações pascais, e apreciámos a beleza do entardecer sobre as montanhas e as nuvens, que algumas quase pareciam um vulcão em erupção, fenómenos da Mãe Natureza, o pôr-do-sol, daqui da nossa porta é também algo belíssimo, que partilho convosco.
Quero desejar-vos um feliz tempo Pascal,
Vivam felizes nesta certeza de que o Senhor Jesus Cristo, está realmente vivo e presente no nosso coração que pulsa e nos faz ter uma esperança dum tempo feliz e com sentido!
Um abraço a todos e todas e a cada um e a cada uma!
Ir. Cristina Macrino.

Da cegueira coletiva à aprendizagem da insensibilidade Ou sobre o comodismo, a violência e o conservadorismo no cotidiano moçambicano e africano, no geral‏

Moçambicanos embarcam em “chapa”
 superlotada - Foto: Reprodução
Mia Couto

Fonte:
http://www.brasildefato.com.br/node/9326

Todos os dias centenas de chapas de caixa aberta** transitam por esta cidade que parece afastar-se do seu próprio lema “Maputo, cidade bela, próspera, limpa, segura e solidária”. Cada um destes “chapas” circula superlotado com dezenas de pessoas que se entrelaçam apinhadas num equilíbrio inseguro e frágil. Aquilo parece um meio de transporte. Mas não é. É um crime ambulante. É um atentado contra a dignidade, uma bomba relógio contra a vida humana. Em nenhum lado do mundo essa forma de transporte é aceitável.

Quem se transporta assim são animais. Não são pessoas. Quem se transporta assim é gado. Para muitos de nós, esse atentado contra o respeito e a dignidade passou a ser vulgar. Achamos que é um erro. Mas aceitamos que se trata de um mal necessário dada a falta de alternativas. De tanto convivermos com o intolerável, existe um risco: aos poucos, aquilo que era errado acaba por ser “normal”. O que era uma resignação temporária passou a ser uma aceitação definitiva. Não tarda que digamos: “nós somos assim, esta é a maneira moçambicana.” Desse modo nos aceitamos pequenos, incapazes e pouco dignos de ser respeitados.

O caso dos chapas é apenas um exemplo, uma ilustração de um processo que eu chamaria de “construção do inevitável”. E é simples: aos poucos, os passageiros do “chapa” deixam de ser visíveis. Na nossa sociedade, essas pessoas já contavam pouco. É gente pobre, gente sem rosto, gente que não aparece na TV nem no jornal. Essa gente surgirá no jornal quando o “chapa” se acidentar. Mas aparecerá sem voz e sem nome. Um simples número para se contabilizar feridos e mortos. Em contrapartida, outras coisas ganharam brilho na nossa sociedade. Por exemplo, adquiriram toda a visibilidade os carros de luxo de uma pequena minoria. Deixamos de ver os “chapas” mortais, mas estamos atentos aos sinais de ostentação dessa minoria.

O assunto que quero abordar convosco hoje é esta operação que banaliza a injustiça e torna invisível a miséria material e moral. Esta vulgarização faz perpetuar a pobreza e faz paralisar a história. Saímos todos os dias para a rua para produzir riqueza, mas regressamos mais pobres, mais exaustos, sem brilho, nem esperança. De tanto sermos banalizados pelos outros, acabamos banalizando a nossa própria vida.


 Dumba-nengue

Visitou-me um escritor amigo da Nigéria. Ele percorreu as cidades de Moçambique e ligou-me de Pemba, capital da Província de Cabo Delgado, também em Moçambique. A primeira coisa que ele disse: Estou maravilhado! Vocês têm estações de gasolina a funcionar! O seu espanto espantou-me a mim. Principalmente porque esse assombro provinha de um cidadão da Nigéria, o maior produtor de petróleo de África. Só depois entendi. O que passa na Nigéria – depois de 50 anos de exportação de petróleo – é que as cidades nigerianas não possuem aquilo que para nós é comum: estações de gasolina vendendo gasolina. As bombas de combustível naquele país estão quase todas fechadas e a gasolina é vendida em garrafas e jerricans (galões para combustível) nos passeios públicos.

Para alguns esse é um processo natural na África. Mas não é. O que sucedeu foi o seguinte: o governo subsidiou os preços dos combustíveis mas não foram os mais desfavorecidos que lucraram mais. Foi uma parte da elite nigeriana que se apoderou dos circuitos formais e desviou para os mecanismos informais a distribuição e venda do combustível. Uma vez mais, os ricos tornaram-se ainda mais ricos. Mas não é a questão política que eu quero trazer aqui. A questão é que, para o cidadão da Nigéria, aquele sistema de venda, à maneira do dumba-nengue ou mercado ambulante (do ronga, confia no teu pé), se tornou normal. Ver bombas de gasolina a funcionar numa nação bem mais pobre como é Moçambique foi, para ele, um motivo de surpresa. Eu vejo muito africanos proclamarem que os mercados informais são a única maneira que África sabe fazer comércio. Que apenas nas barracas sabemos comer e beber.

É mentira. A dumba-nenguização da economia é uma estratégia escolhida para fugir dos impostos, para escapar das obrigações para com o patrimônio público. Quando o meu amigo nigeriano voltou a Maputo ele disse-me o seguinte: “A minha surpresa não foi tanto o que eu vi em Moçambique. Foi sim o que já não sabia ver na Nigéria”.

O principal aliado dos tiranos é a cultura da aceitação. Talvez alguns de vocês sabem que sou um dos autores do Hino Nacional. Quando entregamos o Hino para aprovação na Assembleia da Republica, nós não podíamos imaginar que alguns deputados se sentissem incomodados com a passagem da letra que diz: “Nenhum tirano nos irá escravizar”. É claro que a letra não fala do presente. Mas um hino é feito para durar. E quem pode garantir que um candidato a tirano não assaltará a nossa futura história? O melhor modo de prevenir esse risco não é apenas consolidar a democracia política. É investir numa cultura viva, numa cidadania de construção do futuro. O que me interessa falar aqui, numa Escola de Arte e Cultura é a dimensão cultural das nossas pequenas e grandes misérias.

A invocação da chamada “africanidade” é uma das armadilhas mais usadas pelos tiranos. No Malawi atacaram e rasgaram a roupa de mulheres pelo simples fato de andarem de calças. Mulheres de calças não é uma coisa africana – foi o que invocaram os agressores. Em nome da África, agrediram e mataram pessoas, apenas porque eram homossexuais. Em nome da pureza africana, continua-se a impedir que, apenas por serem do sexo feminino, milhares de crianças não prossigam os seus estudos. Em nome da África, cometem-se os maiores crimes contra a África. O nosso continente é feito de passado e tradição, sim. Mas é feito de modernidade. É feito de mudança. Como todos os outros continentes.

As dinâmicas de mudança confrontam-se com uma identidade feita de passado e tradição. Tudo isto tem a ver com o processo da construção do inevitável. Esse processo envolve o mecanismo da acomodação e o mecanismo da invisibilidade. A acomodação tem várias facetas. Sabemos que está errado, mas nada fazemos. Porque temos medo. Porque achamos que não tem a ver conosco. Ou porque fazemos cálculos. É melhor calar e ser promovido. É melhor recolher uns magros favores em troca do nosso silêncio e da nossa cumplicidade.


 Fenômenos

Eu rabisquei uma lista de fenômenos sociais que se tornaram invisíveis em Moçambique. A lista é bem extensa. Mencionarei apenas de alguns. O primeiro desses fenômenos é a violência. Dizemos com frequência que somos um povo pacífico. Isso é verdade. Mas os povos todos do mundo são pacíficos por natureza. O que muda é a sua história. Assim, é verdade que somos um povo pacífico, mas também é verdade que foi esse povo pacífico que fez uma guerra civil que matou cerca de um milhão de pessoas. A guerra terminou em 1992, e essa data é talvez a mais importante da nossa história recente, depois da Independência Nacional.

Terminou o conflito militar, mas não terminaram outras guerras silenciosas, invisíveis e perversas. Hoje somos uma sociedade em guerra consigo mesma. Os alvos dessa guerra são sempre os mais fracos. Estamos em conflito com as mulheres, com as crianças, com os velhos, estamos em guerra com os pobres, com aqueles que não têm poder. Somos uma sociedade obcecada pelo Poder. Quem não tem poder é como quem circula na traseira do chapa: não existe. Tudo tem uma leitura política, o mais pequeno detalhe é um recado, uma definição de hierarquias.

Quem chega primeiro à reunião, onde se senta, quem não comparece à cerimônia, com que carro chegou, de quem se faz acompanhar, tudo isso são sinais de poder. Nas ruas sou chamado de patrão, sou chamado de “boss”, porque a minha cor da pele é tida como um sinal de Poder. O vendedor de viaturas insurgiu-se com a escolha de um carro que eu queria comprar. “Deixe que escolho um carro compatível com o seu estatuto”, disse ele.


 Mulher

Estamos em guerra conosco mesmos e o primeiro desses alvos é curiosamente uma maioria: as mulheres. Em Moçambique há mais um milhão de mulheres que homens. Mas ao nível das percepções, os homens dão pouca importância a essa verdade. Eles são chefes, os donos, e olham as mulheres como uma pertença privada. As mulheres, por outro lado, ainda pedem licença para existir. A maioria das mulheres que são objeto de violência dos maridos acha que isso não é um crime. Acham normal, acham natural. Ser agredida faz parte do seu destino, da sua imutável natureza.

E conto-vos três episódios reais, que retirei da nossa imprensa apenas nas últimas semanas: Em Cabo Delgado 17 homens violaram uma mulher que se atreveu a atravessar o acampamento onde se praticavam os rituais de iniciação. Da parte das autoridades locais houve uma inaceitável passividade. Foi necessária insistência da família e de ONGs para que houvesse uma insuficiente resposta.

Em Manica, dois jovens violam sexualmente uma mulher no sétimo mês da gravidez. Em Tete, um homem mata a criança de dois meses e esfaqueia gravemente a mulher, porque, ao meio dia ele chegou à casa e a mulher se recusou a fazer sexo com ele. O jornalista da televisão que entrevista o confesso culpado sugere uma quase legitimidade do ato ao perguntar: “o senhor devia estar necessitado não é verdade?”

Reclamamos a violência da rua, mas é mais provável uma mulher ser agredida dentro de casa do que fora de casa. É mais provável uma criança ser agredida e violentada no espaço da sua família. Esta tendência não sucede apenas em Moçambique, mas no mundo. As estatísticas são reveladoras e assustadoras: cerca de 70% dos atos de violência contra a mulher acontecem dentro da casa. Mais de 60% dos assassinatos de mulheres são cometidos pelos seus companheiros ou ex-companheiros. Em todo o mundo, uma em cada três mulheres ou já foi ou irá ser agredida ou violentada. Não é pois Moçambique que é afetado de modo particular. O que sucede é que para nós essa violência é legitimada por razões que se dizem culturais.

E ainda prevalecente a ideia de que a mulher é que é culpada, porque ela é quem provoca a violência. Ainda achamos que este assunto não tem a ver conosco, que é para ser denunciado pelas ONGs. Isto é, desresponsabilizamo-nos. Mesmo sendo mulheres, achamos que este assunto tem a ver com os outros. Mesmo sendo homens, que têm mães, irmãs e filhas, achamos que isto não tem nada a ver conosco.

Eu disse que estávamos em guerra conosco mesmos. Esta guerra doméstica compõe-se de duas violências. A violência daqueles que agridem. E a violência dos que se calam. Marthin Luther King disse: “O que me entristece não é apenas o clamor dos homens maus. É o silêncio dos homens bons.”

*Parte da aula inaugural a Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane (ECA/UEM), em 2012.

**Transportes coletivos


 Quem é

Mia Couto, ou Antônio Emílio Leite Couto, nasceu em Beira, Moçambique, em 1955. É filho de portugueses, e era militante da Frente de Libertação de Moçambique, lutando pela independência de seu país entre 1964 a 1974. Ajudou a compor o hino nacional moçambicano.

terça-feira, 17 de abril de 2012

ALVD Madeira

No passado dia 17 de fevereiro, no Colégio Missionário do Sagrado Coração de Jesus – Funchal, o núcleo ALVD – Madeira reuniu-se com o seu responsável nacional, pe. Adérito Barbosa. Aproveitámos assim a deslocação do pe. Adérito à ilha da Madeira para “(re)ligar” pontos de ação e reforçar a coesão entre os vários projetos da associação.

Após a resolução de vários assuntos práticos pendentes, foram apresentados ao pe. Adérito os membros da reformulada equipa de trabalho do núcleo da alvd – Madeira, bem como as diferentes tarefas / cargos de que cada um está incumbido. O pe. Juan teve ainda oportunidade de falar sobre as últimas atividades organizadas pela ALVD – Madeira em termos de angariação de fundos, divulgação da associação, formação de voluntários e respetivos projetos de intervenção. De realçar que, neste momento, os esforços deste núcleo regional estão concentrados na preparação dos dois voluntários que partem nos próximos meses para trabalhar no Centro Juvenil Padre Dehon – Alto Molócue / Moçambique durante um ano e na preparação do grupo que fará, em Agosto de 2012, uma experiência de um mês de voluntariado também no Alto Molócuè.


Por seu lado o pe. Adérito trouxe à mesa as novidades frescas do continente Africano de onde regressou recentemente. Novos projetos, novas possibilidades de intervenção e colaboração; viabilidades… Recebemos ainda alguns ecos relativos ao serviço prestado pelos últimos voluntários na Comunidade de Alto Molócuè. A partir daqui, é-nos possível refletir sobre os aspetos a melhorar no que toca a formação / preparação dos futuros voluntários, bem como no planeamento e enquadramento dos seus projetos de intervenção.

 No fim, balanço positivo ao trabalho que está a ser desenvolvido tanto na Madeira como em Moçambique, mas também, a consciência de que ainda muito há por fazer! O trabalho continua! Por cá continuaremos com empenho e dedicação!

Saudações da Madeira,
Elisa Freitas

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Está à rasca a geração dos pais

Mia Couto

Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida. 
Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações. 
A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos.
Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor.
Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1.º automóvel, depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada.
Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes.
Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou.
Foi então que os pais ficaram à rasca.
Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado.
Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais.
São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração.
São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar!
A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas.
Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados.
Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional.
Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso signifique que é informada; uma geração dotada de trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere.
Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro abundam.
Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras.
Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável.
Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada.
Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar demagogicamente sobre o desespero alheio.
Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e inteligência nesta geração?
Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos!
Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós).
Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que inveja! que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida.
E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!!
Novos e velhos, todos estamos à rasca.
Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens.
Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles.
A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque é de todos, e a sociedade não consegue, não quer, não pode assumi-la. Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam.
Haverá mais triste prova do nosso falhanço?

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Testemunho da missão, 1 ano de missão em Cuamba/Moçambique/África.

Cuamba, 01/04/2012
 
“Descalça em chão sagrado”
 ”Onde meus pés pisam minha cabeça pensa e meu coração ama”

A experiência de Deus é um caminho que se constrói passo a passo. Para mim, o apelo para servir em Moçambique foi uma interpelação de Deus à qual respondi sim, o que considero um passo marcante em minha vida.

Reafirmei e confirmei o espírito missionário, na disponibilidade em assumir o desafio do novo, a aventura, o sonho de lançar-me numa realidade além-fronteira e distante do já estabelecido. Entendi, a partir daquele momento, que missão é abrir- se, despojar-se, ir ao encontro do diferente.
Ressoou em mim, o pedido de Deus a Moises: Tira as sandálias dos pés porque o lugar onde tu estas pisando é um solo sagrado (Ex 3,5)

Fui ao encontro do povo moçambicano com ternura e compaixão, profundo respeito e grande estima.
Muitas vezes meditei sobre a passagem bíblica de Isaias 49,6: Faço de você uma luz para as nações, para que a minha salvação chegue ate os confins da terra. Isso dava sentido ao dia-a-dia naquela realidade.

Este período que estou nesta realidade, fortaleceu minha convicção sobre quem são os preferidos de Deus. Ao mesmo tempo, me sentir útil e também provocada a gastar a vida junto a outros povos, sentir o diferente, sendo no meio deles uma presença solidaria. Esta sendo uma experiência muito valida e não me arrependo, nem um minuto de tê - la feito. Com certeza, se não a tivesse vivido, não faria as opções que faço hoje, no dia- a- dia.

Aprendi, na pratica do dia-a-dia, a sobreviver como o povo, sentir o sofrimento, as privações pelas quais passam.
Aprendi a andar mais devagar, a fazer menos e a ser feliz assim. É um tempo rico! Pouco a pouco, o medo, a insegurança e a solidão foram dando espaço para a vida, pois apesar de tudo, aprendemos a viver bem.

Encontrei muita solidariedade, quando pensei que era eu que deveria ser solidaria: ser escoltada por mamãs que não conhecia e não me conheciam, ter ajuda nas costuras, bordado, crochê, na limpeza das salas, dos quintais. Provei a kanpaga, a xima, a matapa - comidas e bebida da região. Foi um tempo de aprender a ser, apenas ser!

A palavra vai sendo a cada dia mais, lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho (SL 119, 105). O senhor da messe fez-me um grande apelo e, depois de muita oração e reflexão, o chamado se fez caminho. Abracei com carinho a causa da missão em África, na certeza de que o senhor nunca nos abandona. Pela frente, muitas incertezas, outra cultura, povo desconhecido, tudo diferente.
Mas, a luz da palavra vai apontando o caminho. È preciso estar aberta para acolher o diferente, assim como ele se apresenta, no dia a dia. Assumi os desafios e fui em frente na certeza do Eu estarei contigo ate ao fim do mundo (MT 28,20). Experimentei a grande proteção de Deus, em muitas situações fortes que encontrei!

Eu vi, vi a aflição do meu povo, ouvi o seu clamor!
Vi sangue inocente derramado, lavando a terra mãe!
Vi a ambição pelo poder
Vi a desolação! Vi escolas fechadas, fábricas destruídas...
Vi hospitais abandonados, sem comprimido, sem médicos e nem medicamentos, vi, sim, fome, sede e sofrimento!

Ali me debrucei, para formar catequistas, animadores/as de grupos, crianças, jovens e adultos, incentivar jovens missionários.

Convivo com as famílias, com os doentes, com as comunidades, partilhando e participando da vida do povo, marcando presença nos momentos alegres e tristes, nas celebrações. Incentivo e estimulo para o estudo, a reconciliação, o perdão na vivencia da irmandade.

A catequese com adultos foi à grande descoberta, na qual percebi a necessidade de cultivar a fè madura e colaborar na formação dos animadores e animadoras da comunidade. Esta sendo uma experiência maravilhosa.

Experimento alegrias, proteção de Deus, amor, companheirismo, amizade e bem querer do povo. Sinto a grande solidariedade entre os missionários e missionárias. Vi a sede de aprender, de saber, as infidas solicitações da parte do povo, o esforço de inculturacao. Experimentei a irmã doença chamada malária! A kabanga (bebida típica makua), xima, carne de elefante com batata (feito por mim, uma delicia!).

A despedida das (os) missionários que partem e o abraço caloroso daqueles que chegam, para juntos e juntas construímos nossa missão.

Participei da primeira conferencia internacional de etnobotanica em Maputo, onde puder aprender a conhecer a riqueza das plantas medicinais de Moçambique e assim ajudar no tratamento de doenças típicas do Niassa.

Um aprendizado, de profunda pratica de promover e defender a vida. Um grande obrigado a Deus, que me proporciona esta oportunidade, ao povo que nos acolhe e nos cativa e todas as coirmãs (os) missionários com as quais convivo e aprendo a contribuir para um Moçambique de paz!

Algumas fotos do nosso trabalho e convivência com o povo makua

Formação da comissão de evangelização (lectio divina)

Grande família Além Fronteira, Flor, Célia Cota e Raimundinha!


Em Nampula com as irmãs Bia e Mark (convívio alegre!).

No santuário nossa senhora da Consolata em Massangulo (presença das irmãs da Divina Providencia)

 
Visita nas comunidades São Pedro (equipa missionária).

 
Celebração dia da criança (01/06) na comunidade de Mitucue


Nas comunidades de Nipepe (visita de páscoa)

Mamãs dançarinas na Zambézia, ordenação sacerdotal.
Grande amiga da missão de Nipepe – ir. Maria Célia!

 
Grande amigo da missão de Nipepe – PE.Mabureque!



Primeira visita ao Malawi com a comunidade de Nipepe.

Caçadores de elefante, com a carne do mesmo - Nipepe.


Com as crianças no Malawi.



quarta-feira, 4 de abril de 2012

ALVD Envia livros para UCM Niassa

A ALVD foi entregar no dia 31 de Março mais 20 caixas de livros que se destinam à biblioteca da UCM em Lichinga. Continuamos a lutar para que os livros, "arma da cultura", como lhe chama o bispo do Niassa D. Élio é o melhor contributo que podemos fazer para ajudar o desenvolvimento do povo de Moçambique.




Adérito Gomes Barbosa

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Da cegueira colectiva à aprendizagem da insensibilidade

Mia Couto

Quero, antes de mais saudar os professores.
Durante anos, fui professor. E quando digo isto há uma emoção fortíssima que me atravessa. Eu não sei se há profissão mais nobre do que a de ensinar. E digo ensinar porque existe uma diferença sensível entre ensinar e dar aulas. O professor no sentido de mestre é aquele que dá lições.
Os professores que mais me marcaram na vida foram os que me ensinaram coisas que estavam bem para além da matéria escolar. Não esqueço nunca um professor da escola primária que um dia leu, comovido, um texto escrito por ele mesmo. Logo na declaração da sua intenção nasceu o primeiro espanto: nós, os alunos, é que fazíamos redações, nós é que as líamos em voz alta para ele nos corrigir. Como é que aquele homem grande se sujeitava àquela inversão de papéis? Como é que aceitava fazer algo que só faz quem ainda está a aprender?
Lembro-me como se fosse hoje: o professor era um homem muito alto e seco e, nesse dia, ele subiu ao estrado da sala segurando, nos dedos trémulos, um caderno escolar. E era como se ele se transfigurasse num menino frágil, em flagrante prestação de provas. Parecia um mastro, solitário e desprotegido. Só a sua alma o podia salvar.
Depois, quando anunciou o título da redação veio a surpresa do tema que parecia quase infantil: o professor iria falar das mãos da sua mãe. Éramos crianças e estranhámos que um adulto (e ainda por cima com o estatuto dele) partilhasse connosco esse tipo de sentimento. Mas o que a seguir escutei foi bem mais do que um espanto: ele falava da sua progenitora como eu podia falar da minha própria mãe. Também eu conhecera essas mesmas mãos marcadas pelo trabalho, enrugadas pela dureza da vida, sem nunca conhecerem o bálsamo de nenhum cosmético. No final, o texto acabava sem nenhum artifício, sem nenhuma construção literária. Simplesmente, terminava assim, e eu cito de cor: “é isto que te quero dizer, mãe, dizer-te que me orgulho tanto das tuas mãos calejadas, dizer-te isso agora que não posso senão lembrar o carinho do teu eterno gesto.”
Havia qualquer coisa de profundamente verdadeiro, qualquer coisa diversa naquele texto que o demarcava dos outros textos do manual escolar. É que não surgia ali, em destacado, uma conclusão moral afixada como uma grande proclamação, uma espécie de bandeira hasteada. Aquele momento não foi uma aula. Foi uma lição que sucedeu do mesmo modo como vivemos as coisas mais profundas: aprendemos, sem saber que estamos aprendendo. Lembro este episódio como uma homenagem a todos os professores, a esses abnegados trabalhadores que todos os dias entregam tanto ao futuro deste país.
Comecei por saudar os professores. Parece que me esqueci dos estudantes. Ou que os coloquei em segundo plano. Mas não.
Todos somos professores, mesmo que não o saibamos. Perante os outros, perante os nossos pais, perante os amigos, perante nós mesmos, com bons ou maus exemplos, com tristes ou gratificantes lições, todos somos professores. Um dos maiores professores do nosso tempo é um homem que nunca deu aulas. É um homem que ensinou a sermos mais humanos. Mais do que isso, é um homem que ensinou a ter esperança num mundo tão desesperançado. Esse professor de toda a humanidade, de todas as raças e credos, é um africano. Chama-se Nelson Mandela. A sua vida foi uma interminável lição. Mandela é hoje uma bandeira mundial não apenas porque foi um político que dignificou a política, mas porque nos dignificou a todos nós, seres humanos. 
Deixem-me falar de Mandela. Este homem, que agora está doente e cansado, viveu encarcerado durante vinte e sete anos. Vinte e sete anos são mais do que o tempo de vida da maior parte dos presentes nesta sala. Vinte e sete anos de prisão é tempo suficiente para criar raiva, ódio e insuperáveis ressentimentos. Contudo, este homem converteu esse potencial negativo em força construtiva e reconciliadora. Um dos motivos de inspiração de Mandela foi ter encontrado num poema que se chama “Invictus”. Vou ler esse poema.
Do ventre da noite que tudo cobre
Negra como o fundo da cova escura
Agradeço aos deuses de todos os céus
Por quanto a minha invencível alma perdura
Ante as garras do cruel acaso
Nem eu tremi, nem o medo me turvou
Sob o peso da ameaça e da desumana violência
Eu sangrei mas a minha alma nunca se curvou
Não importa se a passagem é estreita
Não importa quantos castigos devo penar
Eu sou o dono do meu destino
Eu sou o capitão da minha alma.
Estes versos, meus amigos, foram uma espécie de suporte moral que deram força a Nelson Mandela. Vezes infinitas o prisioneiro 46664 da Ilha de Robin regressou a estes versos para não sucumbir. Como escritor e poeta, dá-me grande alegria saber deste poder da poesia. Neste caso, há qualquer coisa que deve ser acrescentada.
Na verdade, este poema foi escrito em 1875. O seu autor não foi um poeta sul-africano, não foi sequer um poeta africano. Quem escreveu estes versos foi um britânico chamado William Ernest Henley. Estes versos viajaram para além de séculos e continentes e iluminaram a esperança de um homem que, em vez de se vitimizar e procurar a vingança, nos deu uma eterna lição da crença nos outros. 
Eu venho falar para a Escola de Comunicação e Artes. Por isso me demorei nestes episódios. Porque acredito que a comunicação e a arte são ferramentas de mudança tão importantes como a política. Mandela fez da política um instrumento de comunicação da verdade. Ele fez da política uma obra na arte da reconciliação, numa nação dividida pelo preconceito. Talvez a cultura seja o mais poderoso e duradouro instrumento de intervenção social. No nosso continente isso é bem claro. Vejamos um exemplo:
Desde há 50 anos, quando começaram a acontecer as independências, o nosso continente conheceu mais de 210 presidentes. O desafio que vos faço é o seguinte: digam o nome de 10 (apenas 10) destes dirigentes que se tenham notabilizado como figuras humanas de referência. Terão dificuldade. Será muito mais fácil enumerarmos artistas e intelectuais dignos de serem lembrados. E é aqui que a figura de Mandela é tão importante para nós, africanos. Podemos não nos lembrar de muitos políticos africanos que nos dignifiquem. Mas o nome de Mandela basta para compensar toda essa ausência e devolver o orgulho de sermos quem somos.
Caros amigos, vou entrar agora no tema central desta alocução.
Todos os dias centenas de chapas de caixa aberta transitam por esta cidade que parece afastar-se do seu próprio lema “Maputo, cidade bela, próspera, limpa, segura e solidária”. Cada um destes “chapas” circula superlotado com dezenas de pessoas que se entrelaçam apinhadas num equilíbrio inseguro e frágil. Aquilo parece um meio de transporte. Mas não é. É um crime ambulante. É um atentado contra a dignidade, uma bomba relógio contra a vida humana. Em nenhum lado do mundo essa forma de transporte é aceitável. Quem se transporta assim são animais. Não são pessoas. Quem se transporta assim é gado. Para muitos de nós esse atentado contra o respeito e a dignidade passou a ser vulgar. Achamos que é um erro. Mas aceitamos que se trata de um mal necessário dada a falta de alternativas. De tanto convivermos com o intolerável, existe um risco: aos poucos aquilo que era errado acaba por ser “normal”. O que era uma resignação temporária passou a ser uma aceitação definitiva. Não tarda que digamos: “nós somos assim, esta é a maneira moçambicana.” Desse modo nos aceitamos pequenos, incapazes e pouco dignos de ser respeitados.
O caso dos chapas é apenas um exemplo, uma ilustração de um processo que eu chamaria de “construção do inevitável”. E é simples: aos poucos, os passageiros do “chapa” deixam de ser visíveis. Na nossa sociedade essas pessoas já contavam pouco. É gente pobre, gente sem rosto, gente que não aparece na TV nem no jornal. Essa gente surgirá no jornal quando o “chapa” se acidentar. Mas aparecerá sem voz e sem nome. Um simples número para se contabilizar feridos e mortos. Em contrapartida, outras coisas ganharam brilho na nossa sociedade. Por exemplo, adquiriram toda a visibilidade os carros de luxo de uma pequena minoria. Deixamos de ver os “chapas” mortais, mas estamos atentos aos sinais de ostentação dessa minoria.
O assunto que quero abordar convosco hoje é esta operação que banaliza a injustiça e torna invisível a miséria material e moral. Esta vulgarização faz perpetuar a pobreza e faz paralisar a história. Saímos todos os dias para a rua para produzir riqueza mas regressamos mais pobres, mais exaustos, sem brilho, nem esperança. De tanto sermos banalizados pelos outros, acabamos banalizando a nossa própria vida.
Estamos perante uma espécie de formatação mental e moral. A mensagem é a seguinte: querem dizer-nos as nossas doenças sociais são incuráveis. Resta-nos viver de remendos e expedientes.
Visitou-me um escritor amigo da Nigéria. Ele percorreu as cidades de Moçambique e ligou-me de Pemba. A primeira coisa que ele disse: Estou maravilhado! Vocês têm estações de gasolina a funcionar! O seu espanto espantou-me a mim. Principalmente porque esse assombro provinha de um cidadão da Nigéria, o maior produtor de petróleo de África. Só depois entendi. O que passa na Nigéria – depois de 50 anos de exportação de petróleo - é que as cidades nigerianas não possuem aquilo que para nós é comum: estações de gasolina vendendo gasolina. As bombas de combustível naquele país estão quase todas fechadas e a gasolina é vendida em garrafas e jerricans nos passeios públicos. Para alguns esse é um processo natural em África. Mas não é. O que sucedeu foi o seguinte: o governo subsidiou os preços dos combustíveis mas não foram os mais desfavorecidos que lucraram mais. Foi uma parte da elite nigeriana que se apoderou dos circuitos formais e desviou para os mecanismos informais a distribuição e venda do combustível. Uma vez mais, os ricos tornaram-se ainda mais ricos. Mas não é a questão politica que eu quero trazer aqui. A questão é que, para o cidadão da Nigéria, aquele sistema de venda, à maneira do dumba-nengue, se tornou normal. Ver bombas de gasolina a funcionar numa nação bem mais pobre como é Moçambique foi, para ele, um motivo de surpresa. Eu vejo muito africanos proclamarem que os mercados informais são a única maneira que África sabe fazer comércio. Que apenas nas barracas sabemos comer e beber. É mentira. A dumba-nenguização da economia é uma estratégia escolhida para fugir dos impostos, para escapar das obrigações para com o património público. Quando o meu amigo nigeriano voltou a Maputo ele disse-me o seguinte:
- A minha surpresa não foi tanto o que eu vi em Moçambique. Foi sim o que já não sabia ver na Nigéria.
O principal aliado dos tiranos é a cultura da aceitação. Talvez alguns de vocês sabem que sou um dos autores do Hino Nacional. Quando entregamos o Hino para aprovação na Assembleia da Republica nós não podíamos imaginar que alguns deputados se sentissem incomodados com a passagem da letra que diz: Nenhum tirano nos irá escravizar. É claro que a letra não fala do presente. Mas um hino é feito para durar. E quem pode garantir que um candidato a tirano não assaltará a nossa futura história? O melhor modo de prevenir esse risco não é apenas consolidar a democracia política. É investir numa cultura viva, numa cidadania de construção do futuro. O que me interessa falar aqui, numa Escola de Arte e Cultura é a dimensão cultural das nossas pequenas e grandes misérias.
A invocação da chamada “africanidade” é uma das armadilhas mais usadas pelos tiranos. No Malawi atacaram e rasgaram a roupa de mulheres pelo simples facto de andarem de calças. Mulheres de calças não é uma coisa africana – foi o que invocaram os agressores. Em nome de África se agrediram e mataram pessoas apenas porque eram homossexuais. Em nome da pureza africana se continua a impedir que, apenas por serem do sexo feminino, milhares de crianças não prossigam os seus estudos. Em nome de África se cometem os maiores crimes contra África. O nosso continente é feito de passado e tradição, sim. Mas é feito de modernidade. É feito de mudança. Como todos os outros continentes.
As dinâmicas de mudança confrontam-se com uma identidade feita de passado e tradição. Tudo isto tem a ver com o processo da construção do inevitável. Esse processo envolve o mecanismo da acomodação e o mecanismo da invisibilidade. A acomodação tem várias facetas. Sabemos que está errado, mas nada fazemos. Porque temos medo. Porque achamos que não tem a ver connosco. Ou porque fazemos cálculos. É melhor calar e ser promovido. É melhor recolher uns magros favores em troca do nosso silêncio e da nossa cumplicidade.
O mecanismo da invisibilidade foi tratado por José Saramago no livro O ensaio sobre a cegueira. Nós estamos doentes, não porque os olhos tenham alguma deficiência, mas porque deixamos de saber olhar. Deixamos de querer ver. E deixamos de nos ver a nós mesmos. No fundo, este é o desfecho desse processo de alienação. Tornamo-nos cegos. Quem não vê, aceita que outros lhe digam como é o mundo.
Eu rabisquei uma lista de fenómenos sociais que se tornaram invisíveis em Moçambique. A lista é bem extensa. Mencionarei apenas de alguns.
A violência contra os mais fracos
O primeiro desses fenómenos é a violência. Dizemos com frequência que somos um povo pacífico. Isso é verdade. Mas os povos todos, do mundo, são pacíficos por natureza. O que muda é a sua história. Assim, é verdade que somos um povo pacífico, mas também é verdade que foi esse povo pacífico que fez uma guerra civil que matou cerca de um milhão de pessoas. A guerra terminou em 1992, e essa data é talvez a mais importante da nossa história recente, depois da Independência Nacional. Terminou o conflito militar, mas não terminaram outras guerras silenciosas, invisíveis e perversas.
Hoje somos uma sociedade em guerra consigo mesma. Os alvos dessa guerra são sempre os mais fracos. Estamos em conflito com as mulheres, com as crianças, com os velhos, estamos em guerra com os pobres, com aqueles que não têm poder. Somos uma sociedade obcecada pelo Poder. Quem não tem poder é como quem circula na traseira do chapa: não existe. Tudo tem uma leitura política, o mais pequeno detalhe é um recado, uma definição de hierarquias. Quem chega primeiro à reunião, onde se senta, quem não comparece à cerimónia, com que carro chegou, de quem se faz acompanhar, tudo isso são sinais de poder. Nas ruas sou chamado de patrão, sou chamado de “boss”, porque a minha cor da pele é tida como um sinal de Poder. O vendedor de viaturas insurgiu-se com a escolha de um carro que eu queria comprar. Deixe que escolho um carro compatível com o seu estatuto. 
Estamos em guerra connosco mesmos e o primeiro desses alvos é curiosamente uma maioria: as mulheres. Em Moçambique há mais um milhão de mulheres que homens. Mas ao nível das percepções, os homens dão pouca importância a essa verdade. Eles são chefes, os donos, e olham as mulheres como uma pertença privada. As mulheres, por outro lado, ainda pedem licença para existir. A maioria das mulheres que são objecto de violência dos maridos acha que isso não é um crime. Acham normal, acham natural. Ser agredida faz parte do seu destino, da sua imutável natureza.
E conto-vos três episódios reais, que retirei da nossa imprensa apenas nas últimas semanas:
Em Cabo Delgado 17 homens violaram uma mulher que se atreveu a atravessar o acampamento onde se praticavam os rituais de iniciação. Da parte das autoridades locais houve uma inaceitável passividade. Foi necessária insistência da família e de ONGs para que houvesse uma insuficiente resposta.
Em Manica dois jovens violam sexualmente uma mulher no sétimo mês da gravidez.
Em Tete um homem mata a criança de dois meses e esfaqueia gravemente a mulher porque a meio do dia ele chegou a casa e a mulher recusou fazer sexo com ele. O jornalista da televisão que entrevista o confesso culpado sugere uma quase legitimidade do ato ao perguntar: “o senhor devia estava necessitado não é verdade?”.
Reclamamos a violência da rua, mas é mais provável uma mulher ser agredida dentro de casa do que fora de casa. É mais provável uma criança ser agredida e violentada no espaço da sua família. Esta tendência não sucede apenas em Moçambique, mas no mundo. As estatísticas são reveladoras e assustadoras: cerca de 70 por cento dos actos de violência contra a mulher acontecem dentro da casa. Mais de 60 por cento dos assassinatos de mulheres são cometidos pelos seus companheiros ou ex-companheiros. Em todo o mundo, uma em cada três mulheres ou já foi ou irá ser agredida ou violentada. Não é pois Moçambique que é afectado de modo particular. O que sucede é que para nós essa violência é legitimada por razões que se dizem culturais. Nós ainda banalizamos muito facilmente. É ainda prevalecente a ideia de que a mulher é que é culpada, porque ela é quem provoca a violência. Ainda achamos que este assunto não tem a ver connosco, que é para ser denunciado pelas ONGs. Isto é, desresponsabilizamo-nos. Mesmo sendo mulheres, achamos que este assunto tem a ver com os outros. Mesmo sendo homens, que têm mães, irmãs e filhas, achamos que isto não tem nada a ver connosco. 
OUTRA GUERRA - AS VIUVAS
Sugiro que leiam o livro de Fabrício Sabat, chamado As viúvas da minha terra, para ficarem com uma ideia do crime generalizado que é cometido contra mulheres que vivem um momento dramático da sua vida. E nesse exacto momento de fragilidade, são assaltadas pelos próprios parentes. Levam-lhes os bens, os filhos, o sossego.
CASO DAS VELHAS
Acusadas de feitiçaria, roubaram-nas durante a vida, fizeram sumir a sua infância e juventude e, no final, roubaram a possibilidade de uma velhice tranquila, usufruída com os netos e as lembranças. Está longínqua a imagem de África como um lugar especial porque os velhos são respeitados.
GUERRA CONTRA OS GAYS E AS LÉSBICAS
Moçambique nem é dos países menos tolerantes. Há países que consideram formal e legalmente um crime o simples facto de ser ter uma orientação sexual diferente. Mesmo assim, há entre nós, uma enorme intolerância.
CASO DOS DOENTES MENTAIS
Nós estamos tão ocupados com outras doenças que esquecemos que não é apenas o HIV SIDA que tem implicações do ponto de vista do estigma social. As doenças mentais são outro mal não visível. Não creio que existam estatísticas da prevalência de doenças mentais em Moçambique. Mas a média em África é de 14 por cento da população.
ALBINOS 
Vou contar-vos um episódio real. Conheci um pedreiro que chamarei apenas por Fabião, que certa vez executou uma obra para minha casa. Um dia, uma moça albina veio à minha porta pedir água. O pedreiro desceu do escadote onde trabalhava para me dar conselhos: “é melhor não dar, ou usar um copo que depois deita fora”. Quando lhe perguntei porquê, ele respondeu: “aquela tjidajna é alguém que tem muitos problemas”. E reproduziu os habituais mitos e preconceitos sobre os albinos. No final confessou: “ainda bem que na minha família nós não temos disso».
Passaram-se anos e a semana passada o mesmo Fabião ligou para mim a perguntar se era possível entrar sem convite na exposição “Filhos da Lua”, na Fortaleza de Maputo. Ele ouviu na rádio que a exposição tinha por tema “os albinos” e estava muito interessado em levar a sua filha a esse evento. “É que a minha filha nasceu albina.” Fabião não podia nunca imaginar ser pai de uma tjidjana. Mas foi. E ele agora, por amor a essa menina, queria enfrentar junto com ela os preconceitos que ele mesmo guardava dentro de si. Chamei Fabião e ofereci-lhe que levasse para a sua filha dois discos. Um de Salif Keita, outro do nosso Aly Fake. E disse “esses são os melhores copos de água. Refrescam a alma”.
Muitas vezes pensamos que essas diferenças vivem fora de nós. A diferença está dentro de nós. Um em cada 35 moçambicanos é portador do gene do albinismo. Um em cada 35 pessoas é portador dessa gente. Nenhum de nós sabe à partida se poderá ser pai ou mãe de uma criança albina.
GUERRA COM OS MORTOS
Até aqui falei de conflitos com mulheres, crianças, velhos. Mas todos esses segmentos sociais são compostos por gente viva. O mais triste é que a nossa sociedade entrou em guerra com os seus próprios mortos. Este é o sintoma mais grave da nossa patologia social: passamos a maltratar até os nossos mortos. O que acontece nos nossos cemitérios é um atentado contra os mais básicos princípios morais. As famílias enterram os seus entes queridos e são obrigadas a retirar o mais ínfimo valor que acompanhe o falecido. Sabem que no dia seguinte, o caixão foi assaltado, o morto foi despido. As próprias jarras de flores são quebradas antes de serem colocadas para prevenir que sejam roubadas e vendidas. Não contentes em assaltarem os vivos, há gangs que se especializaram em roubar os mortos. Nem depois do último suspiro estaremos a salvo dos ladrões.
Meus amigos
Eu disse que estávamos em guerra connosco mesmos. Esta guerra doméstica compõe-se de duas violências. A violência daqueles que agridem. E a violência dos que se calam. Marthin Luther King disse O que me entristece não é apenas o clamor dos homens maus. É o silêncio dos homens bons.
A lista das nossas guerras domésticas estende-se por mais domínios. Os exemplos que escolhi ilustram o facto de que não somos a sociedade pacificada que pretendíamos ser. Há um percurso enorme a percorrer e esse caminho é sobretudo uma viagem interior. Essa viagem só acontecerá se vocês souberem ver, souberem não aceitar. Tudo o que aqui disse pode ser resumido em dois textos pequenos de autores alemães. Peço-vos que escutem. O primeiro é uma parábola e diz o seguinte:
“Um dia, vieram e levaram o meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram o meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram o meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e levaram-me mim. Nessa altura, já não havia mais ninguém para reclamar.”
O segundo texto é um apelo na forma de verso, escrito pelo dramaturgo Bertolt Brecht:
"Nós pedimos-vos com insistência:
Nunca digam - Isso é natural.
Diante das barbaridades de cada dia,
Numa época em que corre sangue
Num tempo em que a arbitrariedade tem força de lei,
Num momento em que a humanidade se desumaniza
Não digam nunca: Isso é natural
Se aceitamos as coisas como naturais
este nosso mundo torna-se imutável
Caros amigos
O nosso tempo também está em guerra contra os jovens. À nossa frente, e não falo apenas de Moçambique, se anunciam tempos difíceis. À nossa frente está um futuro magro em que parece que apenas alguns podem caber. O que nos sugerem é que briguemos uns com outros para ver quem cabe nessa estreita porta. Mas talvez seja possível criar um outro futuro mais amplo.
Vão ser assediados. Por forças políticas que estão mais preocupadas com o Poder do que com a resolução efectiva dos problemas. Por forças que se lembram dos jovens quando se trata de colher votos. Por forças que falam aos jovens, não falam com os jovens.
Vocês são jovens. Ser jovens é uma condição inerente, que se exerce sem esforço. Mais do que jovens, sejam diferentes. Tragam para o nosso tempo o inesperado, o que é novo, o que é historicamente produtivo.
Uma nova classe está povoando o poder político em Moçambique. São os papagaios. Reproduzem o discurso dos chefes. A maior parte deles são jovens. Mas são jovens de alma envelhecida. Os papagaios podem pensar que o seu futuro está assegurado porque olham o país como se fosse um aviário. Mas o nosso futuro como nação não se constrói senão com ousadia, com vitalidade e um infinito respeito pelos outros.
Ficamos muitas vezes à espera, ficamos à espera que o governo faça. Temos medo de tomar iniciativa. Achamos arriscado. Não agimos porque dizemos que faltam recursos, falta orçamento, falta autorização do chefe. Mas existem lições que parecendo pequenas podem tocar alguém para toda a vida.
O professor primário que leu uma redacção sobre as mãos calejadas de sua mãe não imaginava que estaria marcando para sempre um aluno seu. O poeta William Henley não poderia imaginar que versos seus poderiam sustentar, cem anos mais tarde, a vontade de lutar de um africano que iria mudar o destino de milhões de pessoas.
Fazemos o que fazemos não porque sejam grandiosas iniciativas mas porque necessitamos mudar as coisas e melhorar o mundo. Fazemos o que fazemos porque, como diz o poema, nós queremos ser donos do nosso destino e capitães da nossa alma colectiva.