quarta-feira, 18 de abril de 2012

Da cegueira coletiva à aprendizagem da insensibilidade Ou sobre o comodismo, a violência e o conservadorismo no cotidiano moçambicano e africano, no geral‏

Moçambicanos embarcam em “chapa”
 superlotada - Foto: Reprodução
Mia Couto

Fonte:
http://www.brasildefato.com.br/node/9326

Todos os dias centenas de chapas de caixa aberta** transitam por esta cidade que parece afastar-se do seu próprio lema “Maputo, cidade bela, próspera, limpa, segura e solidária”. Cada um destes “chapas” circula superlotado com dezenas de pessoas que se entrelaçam apinhadas num equilíbrio inseguro e frágil. Aquilo parece um meio de transporte. Mas não é. É um crime ambulante. É um atentado contra a dignidade, uma bomba relógio contra a vida humana. Em nenhum lado do mundo essa forma de transporte é aceitável.

Quem se transporta assim são animais. Não são pessoas. Quem se transporta assim é gado. Para muitos de nós, esse atentado contra o respeito e a dignidade passou a ser vulgar. Achamos que é um erro. Mas aceitamos que se trata de um mal necessário dada a falta de alternativas. De tanto convivermos com o intolerável, existe um risco: aos poucos, aquilo que era errado acaba por ser “normal”. O que era uma resignação temporária passou a ser uma aceitação definitiva. Não tarda que digamos: “nós somos assim, esta é a maneira moçambicana.” Desse modo nos aceitamos pequenos, incapazes e pouco dignos de ser respeitados.

O caso dos chapas é apenas um exemplo, uma ilustração de um processo que eu chamaria de “construção do inevitável”. E é simples: aos poucos, os passageiros do “chapa” deixam de ser visíveis. Na nossa sociedade, essas pessoas já contavam pouco. É gente pobre, gente sem rosto, gente que não aparece na TV nem no jornal. Essa gente surgirá no jornal quando o “chapa” se acidentar. Mas aparecerá sem voz e sem nome. Um simples número para se contabilizar feridos e mortos. Em contrapartida, outras coisas ganharam brilho na nossa sociedade. Por exemplo, adquiriram toda a visibilidade os carros de luxo de uma pequena minoria. Deixamos de ver os “chapas” mortais, mas estamos atentos aos sinais de ostentação dessa minoria.

O assunto que quero abordar convosco hoje é esta operação que banaliza a injustiça e torna invisível a miséria material e moral. Esta vulgarização faz perpetuar a pobreza e faz paralisar a história. Saímos todos os dias para a rua para produzir riqueza, mas regressamos mais pobres, mais exaustos, sem brilho, nem esperança. De tanto sermos banalizados pelos outros, acabamos banalizando a nossa própria vida.


 Dumba-nengue

Visitou-me um escritor amigo da Nigéria. Ele percorreu as cidades de Moçambique e ligou-me de Pemba, capital da Província de Cabo Delgado, também em Moçambique. A primeira coisa que ele disse: Estou maravilhado! Vocês têm estações de gasolina a funcionar! O seu espanto espantou-me a mim. Principalmente porque esse assombro provinha de um cidadão da Nigéria, o maior produtor de petróleo de África. Só depois entendi. O que passa na Nigéria – depois de 50 anos de exportação de petróleo – é que as cidades nigerianas não possuem aquilo que para nós é comum: estações de gasolina vendendo gasolina. As bombas de combustível naquele país estão quase todas fechadas e a gasolina é vendida em garrafas e jerricans (galões para combustível) nos passeios públicos.

Para alguns esse é um processo natural na África. Mas não é. O que sucedeu foi o seguinte: o governo subsidiou os preços dos combustíveis mas não foram os mais desfavorecidos que lucraram mais. Foi uma parte da elite nigeriana que se apoderou dos circuitos formais e desviou para os mecanismos informais a distribuição e venda do combustível. Uma vez mais, os ricos tornaram-se ainda mais ricos. Mas não é a questão política que eu quero trazer aqui. A questão é que, para o cidadão da Nigéria, aquele sistema de venda, à maneira do dumba-nengue ou mercado ambulante (do ronga, confia no teu pé), se tornou normal. Ver bombas de gasolina a funcionar numa nação bem mais pobre como é Moçambique foi, para ele, um motivo de surpresa. Eu vejo muito africanos proclamarem que os mercados informais são a única maneira que África sabe fazer comércio. Que apenas nas barracas sabemos comer e beber.

É mentira. A dumba-nenguização da economia é uma estratégia escolhida para fugir dos impostos, para escapar das obrigações para com o patrimônio público. Quando o meu amigo nigeriano voltou a Maputo ele disse-me o seguinte: “A minha surpresa não foi tanto o que eu vi em Moçambique. Foi sim o que já não sabia ver na Nigéria”.

O principal aliado dos tiranos é a cultura da aceitação. Talvez alguns de vocês sabem que sou um dos autores do Hino Nacional. Quando entregamos o Hino para aprovação na Assembleia da Republica, nós não podíamos imaginar que alguns deputados se sentissem incomodados com a passagem da letra que diz: “Nenhum tirano nos irá escravizar”. É claro que a letra não fala do presente. Mas um hino é feito para durar. E quem pode garantir que um candidato a tirano não assaltará a nossa futura história? O melhor modo de prevenir esse risco não é apenas consolidar a democracia política. É investir numa cultura viva, numa cidadania de construção do futuro. O que me interessa falar aqui, numa Escola de Arte e Cultura é a dimensão cultural das nossas pequenas e grandes misérias.

A invocação da chamada “africanidade” é uma das armadilhas mais usadas pelos tiranos. No Malawi atacaram e rasgaram a roupa de mulheres pelo simples fato de andarem de calças. Mulheres de calças não é uma coisa africana – foi o que invocaram os agressores. Em nome da África, agrediram e mataram pessoas, apenas porque eram homossexuais. Em nome da pureza africana, continua-se a impedir que, apenas por serem do sexo feminino, milhares de crianças não prossigam os seus estudos. Em nome da África, cometem-se os maiores crimes contra a África. O nosso continente é feito de passado e tradição, sim. Mas é feito de modernidade. É feito de mudança. Como todos os outros continentes.

As dinâmicas de mudança confrontam-se com uma identidade feita de passado e tradição. Tudo isto tem a ver com o processo da construção do inevitável. Esse processo envolve o mecanismo da acomodação e o mecanismo da invisibilidade. A acomodação tem várias facetas. Sabemos que está errado, mas nada fazemos. Porque temos medo. Porque achamos que não tem a ver conosco. Ou porque fazemos cálculos. É melhor calar e ser promovido. É melhor recolher uns magros favores em troca do nosso silêncio e da nossa cumplicidade.


 Fenômenos

Eu rabisquei uma lista de fenômenos sociais que se tornaram invisíveis em Moçambique. A lista é bem extensa. Mencionarei apenas de alguns. O primeiro desses fenômenos é a violência. Dizemos com frequência que somos um povo pacífico. Isso é verdade. Mas os povos todos do mundo são pacíficos por natureza. O que muda é a sua história. Assim, é verdade que somos um povo pacífico, mas também é verdade que foi esse povo pacífico que fez uma guerra civil que matou cerca de um milhão de pessoas. A guerra terminou em 1992, e essa data é talvez a mais importante da nossa história recente, depois da Independência Nacional.

Terminou o conflito militar, mas não terminaram outras guerras silenciosas, invisíveis e perversas. Hoje somos uma sociedade em guerra consigo mesma. Os alvos dessa guerra são sempre os mais fracos. Estamos em conflito com as mulheres, com as crianças, com os velhos, estamos em guerra com os pobres, com aqueles que não têm poder. Somos uma sociedade obcecada pelo Poder. Quem não tem poder é como quem circula na traseira do chapa: não existe. Tudo tem uma leitura política, o mais pequeno detalhe é um recado, uma definição de hierarquias.

Quem chega primeiro à reunião, onde se senta, quem não comparece à cerimônia, com que carro chegou, de quem se faz acompanhar, tudo isso são sinais de poder. Nas ruas sou chamado de patrão, sou chamado de “boss”, porque a minha cor da pele é tida como um sinal de Poder. O vendedor de viaturas insurgiu-se com a escolha de um carro que eu queria comprar. “Deixe que escolho um carro compatível com o seu estatuto”, disse ele.


 Mulher

Estamos em guerra conosco mesmos e o primeiro desses alvos é curiosamente uma maioria: as mulheres. Em Moçambique há mais um milhão de mulheres que homens. Mas ao nível das percepções, os homens dão pouca importância a essa verdade. Eles são chefes, os donos, e olham as mulheres como uma pertença privada. As mulheres, por outro lado, ainda pedem licença para existir. A maioria das mulheres que são objeto de violência dos maridos acha que isso não é um crime. Acham normal, acham natural. Ser agredida faz parte do seu destino, da sua imutável natureza.

E conto-vos três episódios reais, que retirei da nossa imprensa apenas nas últimas semanas: Em Cabo Delgado 17 homens violaram uma mulher que se atreveu a atravessar o acampamento onde se praticavam os rituais de iniciação. Da parte das autoridades locais houve uma inaceitável passividade. Foi necessária insistência da família e de ONGs para que houvesse uma insuficiente resposta.

Em Manica, dois jovens violam sexualmente uma mulher no sétimo mês da gravidez. Em Tete, um homem mata a criança de dois meses e esfaqueia gravemente a mulher, porque, ao meio dia ele chegou à casa e a mulher se recusou a fazer sexo com ele. O jornalista da televisão que entrevista o confesso culpado sugere uma quase legitimidade do ato ao perguntar: “o senhor devia estar necessitado não é verdade?”

Reclamamos a violência da rua, mas é mais provável uma mulher ser agredida dentro de casa do que fora de casa. É mais provável uma criança ser agredida e violentada no espaço da sua família. Esta tendência não sucede apenas em Moçambique, mas no mundo. As estatísticas são reveladoras e assustadoras: cerca de 70% dos atos de violência contra a mulher acontecem dentro da casa. Mais de 60% dos assassinatos de mulheres são cometidos pelos seus companheiros ou ex-companheiros. Em todo o mundo, uma em cada três mulheres ou já foi ou irá ser agredida ou violentada. Não é pois Moçambique que é afetado de modo particular. O que sucede é que para nós essa violência é legitimada por razões que se dizem culturais.

E ainda prevalecente a ideia de que a mulher é que é culpada, porque ela é quem provoca a violência. Ainda achamos que este assunto não tem a ver conosco, que é para ser denunciado pelas ONGs. Isto é, desresponsabilizamo-nos. Mesmo sendo mulheres, achamos que este assunto tem a ver com os outros. Mesmo sendo homens, que têm mães, irmãs e filhas, achamos que isto não tem nada a ver conosco.

Eu disse que estávamos em guerra conosco mesmos. Esta guerra doméstica compõe-se de duas violências. A violência daqueles que agridem. E a violência dos que se calam. Marthin Luther King disse: “O que me entristece não é apenas o clamor dos homens maus. É o silêncio dos homens bons.”

*Parte da aula inaugural a Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane (ECA/UEM), em 2012.

**Transportes coletivos


 Quem é

Mia Couto, ou Antônio Emílio Leite Couto, nasceu em Beira, Moçambique, em 1955. É filho de portugueses, e era militante da Frente de Libertação de Moçambique, lutando pela independência de seu país entre 1964 a 1974. Ajudou a compor o hino nacional moçambicano.

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